quarta-feira, 3 de abril de 2013

O autoritarismo nosso de cada dia não nos dai hoje



(Veiculado pelo Correio da Cidadania a partir de 22/03/13)

Paulo Metri – conselheiro do Clube de Engenharia
 
Nossa sociedade é agredida por inúmeros comportamentos autoritários, no dia-a-dia, e os absorve como se fossem intrínsecos à vida. Outras sociedades podem sofrer com autoritarismos análogos ou até mais drásticos, mas isto não justifica o que aqui acontece.
Pode-se dizer que ações impositivas, socialmente irracionais, são uma tradição cultural, a herança de sistemas passados sem garantias ou uma característica natural dos humanos. A escravidão é uma das expressões máximas de ação desumana de força e despotismo. Maquiavel, ao sugerir ações para o Príncipe, visando este se manter no poder, recomendava toda sorte de ameaças e castigos, inclusive mortes. Entretanto, não é porque existe um triste passado de autoritarismo que ações atuais de força estão liberadas.
Mesmo com a aparência democrática da sociedade moderna ocidental, a verdade é que a liberdade existe nos pontos onde ela não prejudica a acumulação de riqueza. A arquitetura do sistema existente foi feita para garantir a acumulação com estampa democrática. Um país, como o nosso, com grande desnível de renda e riqueza, apesar da melhoria dos últimos anos, não tem democracia econômica.
Uma fase democrática incomum entre nós ocorreu nos anos de 1987 e 1988, durante a elaboração da nossa Constituição, graças à razoável participação popular. Como consequência deste período, resultou uma Constituição comprometida com o povo. Depois, ela foi autoritariamente reformulada, com a onda neoliberal, na década de 1990, sem nenhum debate profundo na sociedade.
Não há dúvida que não se pode ter uma verdadeira democracia com uma mídia tendenciosa dominada pelo capital, que é a existente no nosso país hoje. Contudo, salvo engano meu, o povo, na sua imensa sabedoria empírica, cada vez confia menos nesta mídia. Ele começa a descobrir que ela não é isenta e não faz as análises necessárias. Não tem interesse em promover um real debate de idéias, querendo só impor sua visão. Hoje, parte da população quer ter acesso a informações de qualidade e, portanto, visita meios de comunicação diversos em busca de novos ângulos para as questões.
Por outro lado, erra quem pensa que o autoritarismo é uma prática exclusiva da direita. Governantes reconhecidos como de esquerda precisariam mudar algumas práticas horrorosas de autoritarismo. É comum o cidadão se deparar com a recusa do governo ao diálogo, assim como com a imposição irracional de posições. Enfim, atos autoritários são encontrados para todos os lados.
Com um caso real, busco mostrar o que ocorre na administração pública, refletindo todo este contexto de imposição, desrespeito ao interesse social e perjúrio. Trata-se do que está ocorrendo atualmente no setor de petróleo. Não irei me ater à mudança extremamente autoritária ocorrida neste setor, nos anos de 1995 e 1997, até porque muitos autores, inclusive a minha pessoa, já escreveram artigos a respeito.
A sociedade não tem acesso aos estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que determinam o valor de referência do índice “Reserva sobre Produção de petróleo” (R/P) que deve ser usado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e a Agência Nacional do Petróleo (ANP), para definição da necessidade de rodadas de leilões de áreas. O inciso VIII do artigo 4º da lei 10.847, de 2004, diz: “Compete à EPE promover estudos para dar suporte ao gerenciamento da relação reserva e produção de hidrocarbonetos no Brasil, visando a auto-suficiência sustentável”.
Por sua vez, o CNPE tem como atribuição, segundo o inciso V do artigo 2º da lei 9.478 de 1997: “Estabelecer diretrizes para a importação e exportação, de maneira a atender às necessidades de consumo interno de petróleo e seus derivados, gás natural e condensado, e assegurar o adequado funcionamento do Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e o cumprimento do Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis...”. Não existe decisão do CNPE de acesso público determinando e explicando a diretriz para exportação de petróleo.
A ANP não realiza audiências merecedoras de serem consideradas públicas. Respostas dadas às perguntas feitas pelos movimentos sociais são insuficientes e os correspondentes trechos das atas não representam a realidade.
Especificamente, a audiência pública relativa à 11ª rodada deu-se dentro de um prédio militar, a Escola de Guerra Naval, onde militares estavam com armas de guerra a guarnecendo, representando uma demonstração de força desnecessária. Aliás, as Forças Armadas não deviam se prestar ao vergonhoso papel de guardiãs de audiências onde a entrega de patrimônio público nacional é combinada.
A ANP prioriza, claramente, nos convites para as audiências, a presença dos agentes econômicos, o que pode ser observado quando ela diz querer conhecer, através das audiências, as “críticas e sugestões dos agentes econômicos com relação ao pré-edital e ao novo contrato de concessão”. Nada é dito com relação à sociedade. A ANP não tem a isenção necessária para ser um verdadeiro árbitro, pois é tendenciosa a favor dos agentes econômicos.
Mais uma pérola autoritária deste setor. Através da Resolução Número 3 de 18/12/12, o CNPE “autoriza a ANP a realizar a 11ª Rodada de licitações de blocos”. No parágrafo único, ele diz se tratar de leilões visando conceder 172 blocos do território nacional. Em 19/2/13, ocorre a audiência pública relativa a estes blocos. No dia 28/2/13, são acrescentados mais 117 blocos a esta rodada, que não foram objeto da audiência citada.
A Diretora-Geral da ANP declarou que, nos 289 blocos da 11ª rodada, deverão ser descobertos 19,1 bilhões de barris de petróleo. Estes barris serão exportados, porque a Petrobras já garante o abastecimento nacional, pelos próximos 40 anos, com descobertas já ocorridas. A pergunta óbvia é: “quem definiu que a exportação deste petróleo, seguindo a lei 9.478, é a melhor opção para a sociedade brasileira?”
Para finalizar, o porquê de tanta agressividade autoritária e decisão antissocial está relacionado com o fato de que a desinformação do povo é imensa. Desta forma, os governantes não esperam nenhuma reação. Neste quadro, os brasileiros serão respeitados somente quando mostrarem estar informados e revoltados com as decisões antissociais.
 
Blog do autor: http://paulometri.blogspot.com.br/

Número crescente de concessões ao capital é a resposta do governo à crise  
 
ESCRITO POR OSWALDO COGGIOLA   
QUARTA, 27 DE FEVEREIRO DE 2013
 
 
 
No início do ano pré-eleitoral (na verdade, já eleitoral) de 2013, todos os índices da economia brasileira apontam para a estagnação e o recuo. À queda, já anunciada, do PIB, veio somar-se agora o recuo industrial (o primeiro em uma década), o retrocesso do investimento por cinco trimestres consecutivos, o aumento do desemprego, que já afetava o setor industrial e agora se transmitiu para o setor comercial (sinalizando o fim do boom do consumo que foi a marca econômica e política do governo petista), o aumento da inflação (que teria superado 1% em dezembro passado, isto é, mais de 15% anual, se não mediasse a queda parcial das tarifas de energia - que irá reduzir em 28% o custo dos grandes consumidores e em 16% o dos pequenos e médios consumidores - e o adiamento dos reajustes de tarifa nos transportes), a queda do lucro bancário privado (- 5,3%) e o aumento (30% em média) das provisões contra calotes do setor financeiro, que lucrou R$ 27, 7 bilhões, com um total de... R$ 52 bilhões previstos para devedores duvidosos e inadimplentes. A Bolsa de Valores de São Paulo anunciou no início de 2012 que 45 companhias fariam ofertas públicas iniciais de cotização de ações (só três delas o fizeram). Em suma, um cenário de crise e recessão. O “remédio” do governo é a mesmice aumentada, ou mais e ainda mais do mesmo.
 
O setor de ponta da saúde pública brasileira, os hospitais universitários, por exemplo, estão sendo “assediados”, mediante “terrorismo social” (termos usados pelo procurador federal do Ministério Público do Trabalho) para ceder sua gestão ao setor privado mediante a Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). O governo Dilma afrouxou todas as condições para a privatização (leilão) de 7500 quilômetros de rodovias, em nove lotes, aumentando de 6% para 14,6% a taxa de retorno garantido para as empresas participantes. Com esse presentão para o grande capital, pretende-se manter o programa de investimentos de R$ 250 bilhões em rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Sem falar em que o governo está hipotecando todas as reservas do pré-sal, como já foi feito pelo governo Lula, que entregou uma grande parte do pré-sal para a empresa OGX (Eike Batista).
 
Com a renovação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia, o governo pretende hipotecar o patrimônio público para reduzir a tarifa média de energia. Uma vez vencidas as concessões, elas deveriam ser integradas ao patrimônio público. A MP (decreto) 579 é uma tentativa do governo para utilizar aproximadamente 22 mil megawatts de usinas hidrelétricas e 80 mil quilômetros de vias de transmissão para tentar fornecer essa energia só pelo custo de operação e manutenção e, com isso, tentar reduzir a média tarifária, que sempre beneficiou os maiores consumidores. O governo diminuiu a tarifa média, só que quem mais consome energia no Brasil é o grande capital (industrial, comercial, agrário, financeiro). Qualquer benefício linear beneficia só os mais ricos e deixa de fora 2,5 milhões de pessoas que ainda não têm acesso à energia. 1.500 consumidores consomem aproximadamente 28% de toda a eletricidade brasileira, e eles compram energia a um preço aviltado, porque pagam apenas 20% do custo da energia, de não menos de cem reais o megawatt-hora (MWh). Esses consumidores pagam cerca de R$ 20 por MWh. E os apagões são cada vez mais frequentes, pois, sem recursos, a manutenção é pífia.
 
O governo, além disso, criou uma fonte de recursos públicos para os bancos privados financiarem investimentos de médio e longo prazo, principalmente os destinados a bancar os programas de concessões de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Os bancos privados deverão pagar ao governo pelo acesso aos recursos uma correção baseada na TJLP (taxa de juros de longo prazo), hoje de 5% ao ano, muito abaixo da taxa “de mercado”. O formato da medida “atende pedido dos bancos privados”, anunciou o governo. Na prática, ele está acabando com a intermediação do BNDES. O banco público recebia dinheiro do Tesouro e o repassava a bancos privados, cobrando uma taxa. Agora, os bancos terão acesso direto aos recursos. A nova fonte de água benta vai se somar aos R$ 15 bilhões de depósitos compulsórios que o BC já havia liberado para financiar investimentos. As instituições financeiras privadas poderão formar consórcios para ter acesso ao fundo de recursos públicos.
 
Os economistas “neoliberais” (tucanos ou não), escrachados durante uma década, celebram por isso aos brados a conversão do governo ao “credo (violento) do mercado”, na verdade o credo do subsídio público ao grande capital. “O governo saiu de seu labirinto”, anunciou o inefável economista tucano Mendonça de Barros, pois “passou a depender do capital privado para superar as limitações ao crescimento” (capital privado que, por sua vez, depende dos créditos públicos e do saque ao Estado mediante a especulação com títulos públicos). O governo federal já destinou dois terços dos recursos gastos em 2013 para juros e amortizações da dívida: apenas nos primeiros 35 dias de 2013 já foram gastos nada menos que R$ 145 bilhões com juros e amortizações da dívida, valor equivalente ao dobro dos recursos previstos para educação em todo o ano de 2013. Para 2013, estão previstos R$ 900 bilhões para a dívida pública, 20% a mais do que os R$ 753 bilhões gastos com a dívida no ano passado. Isto mostra que, apesar da propaganda oficial sobre a queda da taxa de juros, a dívida pública continua no centro da crise nacional. A parte do orçamento federal destinada para pagamento de juros e amortizações da dívida cresceu de 36,7% para 45,05%.
 
No Código Florestal, a expectativa do “veta tudo Dilma” não se concretizou, e o governo tem demonstrado que seu projeto não se restringe a uma ou outra área. Trata-se de um projeto global em favor do grande capital, adequando às formas de organização do Estado à crise. Aí se encaixa o projeto de Código Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação, que teve a “contribuição” de fundações privadas de todo o país, há décadas empenhadas na privatização no interior das instituições públicas. Para pagar a dívida pública, houve nos dois últimos anos cortes no orçamento de 50 e 55 bilhões de reais, que, somente entre os anos 2010 e 2011, fizeram cair 16,2% o orçamento para ciência e tecnologia. Agora, para “remediar”, não só será permitida a transferência direta de recursos públicos para o setor privado, como se ampliará a possibilidade de as instituições públicas – as universidades, responsáveis por mais de 90% da produção científica do país – compartilharem seus laboratórios, equipamentos, materiais e instalações com empresas privadas, inclusive transnacionais. O Código permitirá ainda o acesso à biodiversidade pelos monopólios privados. Será permitido, sem autorização prévia, o acesso ao patrimônio genético e de conhecimento tradicional para fins de pesquisa. E também a extração do patrimônio para fins de produção e comercialização. Uma política de entrega nacional total.
 
A crise econômica não tem ainda reflexos políticos decisivos. Lula, finalmente, lançou a candidatura de Dilma Roussef à reeleição. As sondagens provisórias a situam em torno de 55% das intenções de voto, com pouco mais de 10% para o tucano Aécio Neves, e percentuais semelhantes para a oportunista Marina Silva (que está leiloando sua candidatura para alguma sigla ou coalizão; a ex-senadora e ministra foi recebida com gritos de “Brasil, urgente, Marina presidente” ao entrar em um teatro lotado na Vila Madalena) e para Eduardo Campos (PSB), até a data, no entanto, integrante da base aliada do governo. Ou seja, teríamos uma nova eleição plebiscitária, onde só estariam realmente em disputa alguns governos estaduais, São Paulo em primeiríssimo lugar (haveria cinco pré-candidaturas petistas, incluída a de Guido Mantega: a eleição de SP seria mais importante que a nacional...). As especulações eleitorais, a mais de um ano e meio de distância do pleito, vão com sede demais ao pote.
 
E não só por causa do cenário econômico de crise, nacional e internacional, mas também por causa da luta de classes, e da crise política. Uma plenária para organizar a luta pela negociação e contração coletiva no serviço público e em defesa do direito de greve no funcionalismo reuniu a 19 de fevereiro diversas entidades dos servidores públicos dos três entes federativos na Câmara dos Deputados. O evento contou com a presença de cerca de 600 participantes, das mais diversas categorias do serviço público. Teria sido melhor realizá-la num local sindical, num centro da luta de classes, mas algo foi feito. Os sindicatos portuários, vinculados à Força Sindical (que anunciou sua ruptura com o governo) e à Federação Portuária (CUT), por sua vez, anunciaram medidas de luta contra a privatização dos portos (que implicará em milhares de demissões). É claro que essas burocracias apenas ameaçam (para negociar alguma coisa), mas viram-se obrigados a abrir uma fresta por onde pode ser proposta e agitada uma política classista (não à privatização, garantia e estabilidade no emprego, reajustes salariais).
 
A crise do mensalão ainda não acabou, e vai marcar as composições eleitorais. Como disse candidamente Wladimir Pomar (ideólogo da “esquerda” do PT), o STF “aceitou a tese do mensalão, sem qualquer consistência objetiva, pois, se houvesse, teria que ter julgado a maior parte da Câmara dos Deputados”. Tal e qual. Genoíno e Zé Dirceu, para ele, “cometem um erro crasso ao pretenderem estabelecer uma relação das ações de repúdio aos procedimentos e às decisões do STF com o apoio e sustentação do governo da presidente Dilma, e com a luta pelas reformas política e tributária. E praticam um erro maior ainda ao pretenderem fazer com que o PT assuma, neste momento, como sua tarefa mais importante, a luta pela anulação das condenações. Esquecem que isto incluiria absolver também o escroque [Marcos Valério] que praticou inúmeros delitos comprováveis e colocar o PT no banco dos réus... Os filiados atingidos pela ação penal 470 não podem transformar sua situação numa síndrome partidária”. Xadrez para eles, portanto, para salvar o restante da Câmara dos Deputados e o PT, ou seja, a quadrilha toda.
 
A esquerda classista está metida no meio das mesquinhas especulações eleitorais, nas quais é só marginal. Uma política eleitoral classista, no entanto, só pode ser o resultado final (e secundário) de uma vigorosa política de frente única de classe para organizar as lutas em curso, e também as lutas potenciais (pelo salário, pelo emprego, pelo direito à organização) suscitadas pela crise do capital. Só assim a crise política dos “de cima” poderia ser aproveitada politicamente pelos “de baixo”. A primeira condição é superar o sectarismo autorreferente e autoproclamado com uma política de luta, de unidade e de independência de classe.
 
Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.

Governo financia entrega das infraestruturas do país a bancos e multinacionais  
 
ESCRITO POR PAULO PASSARINHO   
SEXTA, 01 DE MARÇO DE 2013
 
Tudo indica, já entramos na fase antecipada da campanha presidencial de 2014. Neste mês de fevereiro, Dilma, Aécio, Eduardo Campos e Marina Silva claramente se movimentam com os olhos voltados para outubro do ano que vem.
 
Mas há substantivamente alguma novidade a ser destacada no discurso dessas figuras? Esta é uma indagação de difícil resposta, ao menos para a minha limitada visão. Razões para uma nova proposta não faltam. Apesar da propalada e badalada mudança nos rumos do país, nos anos Lula, o que mais assistimos é o mais do mesmo.
 
Estruturalmente, apesar da folga de nossas contas externas durante o período compreendido entre 2003 e 2007, não somente não aproveitamos essa oportunidade, como a partir de então voltamos à perigosa trajetória de crescentes déficits nas transações correntes do país. As bandeiras representativas para uma efetiva mudança nos rumos do Brasil, em relação ao projeto que se desenvolve desde os anos 1990 – mudança do tripé da política econômica; reforma tributária progressiva; reforma fiscal em prol da federação, das despesas sociais e da infraestrutura logística; reforma agrária e mudança paulatina do modelo agrícola, entre outras -, foram abandonadas.
 
O lulismo preferiu se fiar – além do apoio dos bancos, construtoras, multinacionais e agronegócio – na capitalização política dos efeitos das medidas compensatórias recomendadas pelo Banco Mundial – programas de transferência de renda aos mais pobres, reajustes reais do combalido salário-mínimo e ampliação dos mecanismos de crédito para a aquisição de bens de consumo.
 
Estas iniciativas tiveram, de fato, um importante efeito minimizador das graves consequências geradas e produzidas durante o segundo mandato de FHC (1999/2002). Isto propiciou, politicamente, efeito positivo que se traduziu na alta popularidade de Lula e na própria eleição de Dilma, em 2010. Mas somente os incautos ou oportunistas podem abstrair a perigosa trajetória que estamos trilhando.
 
Gigante rigorosamente adormecido, o Brasil de hoje é um país sem projeto próprio de desenvolvimento ou soberania. Sob o ponto de vista produtivo, temos uma economia desnacionalizada, uma indústria dominada pelas multinacionais, sem nenhuma autonomia científica ou tecnológica (excetuando-se, talvez, o setor de petróleo, graças à permanentemente atacada Petrobrás), e um modelo agrícola baseado na importação de insumos, defensivos e sementes, utilizadas sobremaneira em monoculturas extensivas, voltadas para a exportação de commodities. A expansão da renda e do emprego dos trabalhadores de baixa qualificação somente foi possível a partir de forte processo de endividamento do Estado, das empresas e das famílias.
 
A fragilidade do país é tamanha que até mesmo na área de serviços, tradicionalmente dominada pelo capital nacional, o avanço do capital estrangeiro é notório e abrangente. Diferentes setores são exemplos claros desse processo. Bancos, supermercados, estabelecimentos de ensino, hospitais, planos de saúde e outros serviços públicos essenciais ao dia-a-dia da população passam crescentemente às mãos de “investidores” externos.
 
Dentre esses serviços públicos essenciais, ganha destaque a infraestrutura logística do país. Em meio à ofensiva privatista do primeiro governo de FHC – e apesar de que já estivessem sendo entregues à iniciativa privada os setores de telecomunicações, empresas de distribuição de energia elétrica, água e saneamento, entre outros setores controlados por antigas estatais –, a promessa e justificativa para tão abrangente programa de desestatização era a necessidade de o Estado gerar recursos para serem investidos na redução da dívida pública, nas áreas sociais e na infraestrutura do país.
 
Apesar disso, o que hoje assistimos é a explosão do endividamento público – comprometendo quase a metade do Orçamento Geral da União com despesas financeiras -, a acelerada degradação da qualidade dos serviços sociais públicos e a total incapacidade do Estado em construir e manter adequadamente a infraestrutura logística do país.
 
Frente a essa situação, pressionado pelas reduzidas taxas de investimento da economia brasileira e o baixíssimo crescimento econômico nos dois primeiros anos de seu governo, Dilma resolveu lançar um ambicioso programa de concessões e investimentos, voltado para as áreas de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, hidrovias, geração e transmissão de energia elétrica, petróleo e gás.
 
Os números projetados pelo ministro da Fazenda, garoto-propaganda do pacote apresentado nesta semana, em Nova York, a investidores, chegam a um montante anunciado de US$ 235 bilhões. Para os interessados, além de uma taxa real de retorno que será superior a 10% ao ano (descontada a inflação), e de um prazo de duração dos contratos ampliado, variando de 30 a 35 anos, o governo oferecerá crédito subsidiado, em um montante correspondente entre 65% a 80% do valor dos investimentos previstos.
 
Esta chamada “alavancagem” será garantida pelo governo através do BNDES, e também através dos bancos privados. Desse modo, para tornar ainda mais atrativo o negócio, inclusive para os hiperlucrativos bancos privados brasileiros, o Tesouro Nacional repassaria diretamente a esses bancos os recursos a serem emprestados aos futuros interessados pelas concessões a serem feitas pelo governo.
 
Aos leitores que se encontrem espantados ou perplexos com tanta generosidade do governo brasileiro, há uma explicação adicional que é importante de ser conhecida. Para a chamada formatação dessas propostas de concessões, o governo criou, em 2009, uma empresa, a Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP), uma curiosa união do BNDES com oito bancos com atuação no país: Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Santander, HSBC, Citibank, Espírito Santo e Votorantim. É esta empresa, portanto, que estabelece essas condições, para a continuidade da entrega da área de infraestrutura do país a investidores privados e estrangeiros, sempre com a providencial transferência de recursos do Estado para esses insuspeitos interessados.
 
Infelizmente, nenhum dos quatro possíveis postulantes à presidência da República, em 2014, citados no início deste artigo, apresenta qualquer divergência relevante, em relação ao modelo econômico em curso no Brasil. Apesar, inclusive, das permanentes e artificiais alfinetadas entre tucanos e lulistas. Por isso, cabe a pergunta: qual a razão para tanta precipitação? O que se disputa, a rigor, é apenas a gerência de um projeto, pré-definido pelos interesses hegemônicos de bancos e multinacionais.
 
A urgência, com certeza, deve ser de outra natureza: a necessidade de um verdadeiro candidato à presidente da República, com um projeto e plano de governo, dignos da importância desse cargo e do real significado da palavra república.
 
Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.

erça, 18 de dezembro de 2012

O assunto mais estratégico. Artigo de José Eli da Veiga

"Realmente preocupante na situação econômica do Brasil não é a lentidão com que seu PIB vem aumentando, mas a falta de longevidade para essa extraordinária capacidade de converter crescimento em desenvolvimento. Tenebroso é o cenário para as próximas gerações", escreve José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), em artigo publicado no jornal Valor, 18-12-2012.
Segundo ele, "o mais sério problema nacional está nessa contradição entre o inexorável imediatismo da dinâmica política democrática e a serenidade requerida pela ação estratégica. Diante dele, tanto os recentes posicionamentos das entidades de classe, sejam patronais ou trabalhistas, quanto os comportamentos da intelectualidade e da mídia, são indícios de profunda debilidade da sociedade civil".
Eis o artigo.


Tão suspeita quanto o chilique da revista "The Economist" é a avalanche de artigos sobre o desempenho econômico do Brasil, inteiramente ofuscados por seu Produto Interno Bruto (PIB) "fraco", "medíocre", "pífio", "pigmeu", "raquítico", "tíbio", "tímido", ou "Pibinho".

Todas essas variantes revelam quanto é mais cômodo deixar-se levar pelo reducionismo contábil do que atinar para as reais influências das variações do PIB sobre ao menos oito determinantes do desenvolvimento: coesão social, educação, emprego, estabilidade, governança, igualdade, infraestrutura (com realce para o saneamento) e saúde. Oito dimensões da qualidade do crescimento.

O pressuposto reducionista é que, em todas as sociedades e momentos históricos, as taxas de variação do PIB teriam impactos diretamente proporcionais no agregado das oito dimensões. Crendice cabalmente desmentida pela atual qualidade do crescimento econômico do Brasil: a melhor do mundo, quase idêntica à suíça, que ocupa o segundo lugar.

Dos países que participam diretamente do G-20, sete têm desempenhos não muito distantes do suíço-brasileiro: França, Indonésia, Austrália, Coreia do Sul, Reino Unido, Turquia, Canadá e Alemanha. Nenhum dos outros quatro Brics chega sequer a ter qualidade de crescimento acima da média mundial. Na China e na Índia ela chega a ser comparável à do Haiti.

Realmente preocupante na situação econômica do Brasil não é a lentidão com que seu PIB vem aumentando, mas a falta de longevidade para essa extraordinária capacidade de converter crescimento em desenvolvimento. Tenebroso é o cenário para as próximas gerações.

Entre as 150 economias que dispõem de estatísticas confiáveis, a brasileira despenca do 1º para o 65º lugar ao serem considerados os vetores que mais condicionam a produtividade futura: preparo e instituições necessários às inovações tecnológicas e ao empreendedorismo, capacidade de investimento, equilíbrio das finanças públicas, manejo macroeconômico, rede de proteção social e demografia.

Na avaliação de longo prazo, o Brasil até se sai melhor no G-20 do que Indonésia, África do Sul e Índia. Mas praticamente empata com a China e sofre o vexame de perder feio para Rússia, Turquia, Argentina e México.

Então, prever se nos próximos dois anos a taxa de crescimento voltará ou não a patamar acima de 3% é muito menos relevante do que parece, por mais que tal prognóstico seja absolutamente transcendente para quem está plugado nas próximas eleições.

Sob o prisma do interesse nacional e do bem-estar das futuras gerações, importa muito mais entender as razões da imensa distância que separa a atual excelência na tradução de crescimento em desenvolvimento e o sombrio prognóstico sobre o alcance histórico de tão virtuoso desempenho.

Seria muita pretensão arriscar alguma resposta simples para questão dessa complexidade. O que dá para fazer aqui é chamar a atenção do leitor para a gravidade que adquiriu no Brasil o choque - sempre recorrente em sociedades democráticas - entre ciclo eleitoral e orientação estratégica.

É inevitável que prognósticos sobre as taxas de aumento do PIB para os próximos dois anos sejam absolutamente cruciais para os 70 mil políticos com mandatos eletivos e suas vastas legiões de assessores, correligionários e simpatizantes. Já para quase todo o restante da sociedade - a começar pelo empresariado - deveria parecer muito mais decisivo descobrir de que maneira o potencial de longo prazo do Brasil poderia se aproximar dos do Chile e do Uruguai, mesmo que não dê para sonhar com os de Cingapura, Hong Kong ou Coreia do Sul. Muito menos com os dos países do primeiro mundo, isolados na dianteira global, sob a vanguarda dos escandinavos.

O mais sério problema nacional está nessa contradição entre o inexorável imediatismo da dinâmica política democrática e a serenidade requerida pela ação estratégica. Diante dele, tanto os recentes posicionamentos das entidades de classe, sejam patronais ou trabalhistas, quanto os comportamentos da intelectualidade e da mídia, são indícios de profunda debilidade da sociedade civil.

Em tal contexto, a principal diretriz da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) deveria ser mobilizar pesquisadores de todas as áreas com o objetivo de se investigar por que este país chega a vencer o campeonato mundial de qualidade do crescimento e simultaneamente projetar futuro tão incerto, para dizer o mínimo.

Contudo, por mais meritórios que sejam os programas da SAE e do vinculado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), eles não poderiam estar mais alheios a parecido desafio.

Fica então uma sugestão de fim de ano para quem queira entender melhor a cegueira induzida pelo reducionismo contábil: aproveitar alguns momentos do recesso que se avizinha para refletir sobre os resultados da pesquisa "From Wealth to Well-Being", apresentados em relatório recém-lançado pelo The Boston Consulting Group.